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Escrevo-te para relembrar. Relembrar de viver. Relembrar dos tempos onde valia a pena viver. Tempos mais simples; tempos, onde o tempo não era esse tempo; esse tempo que voa, que passa, que se perde; o agora, que era pra ontem. E o ontem não existe. Ou nunca existiu. Tempos onde o Sol guiava a luz pra alma e o calor pro corpo. Tempos onde o relógio era apenas um brinde de plástico que na sala ficava e fazia aquele barulho ensurdecedor na calada da madrugada. À noite—ah! A noite. A Lua iluminando o cheiro da grama, dando palco para os grilos e as corujas. E O RELÓGIO. TIC-TAC. TIC-TAC. TIC. TAC. Agora mesmo te escrevo ouvindo esse barulho, ressoando, reluzente. Infelizmente sem a luz do Sol acalentando a minha alma e acalmando o meu corpo. Mas ao menos a quietude da madrugada me faz relembrar e pensar sobre essa dor, sem cor.

Sim, venho aqui por meio deste, te relembrar. Relembrar de viver. Relembrar e reviver. Lembrar que essa dor, jamais será preenchida. Essa cor, jamais será percebida—até porque tu és daltônico. Isso seria uma boa questão a ser investigada, pensando bem. Se tu não consegues diferenciar uma cor, como esperas diferenciar a dor‽

No entanto, como sabemos, tu vais seguir uma prática, um ofício, uma carreira, uma paixão que consiste em utilizar muito das cores—e das dores. Se foi possível passear com as cores sem exatidão, não seria lindo passear com as dores sem a mínima ideia se é tristeza ou depressão? (Saberemos que trata-se de depressão, mas não esquenta com isso; sem pressão).

Entre as cores e as dores, têm os amores. E olha, esse entre entra com cores e quase-sempre sai com dores. Mas, lembra? Sim, vim aqui pra te relembrar. Relembrar de viver. De perdurar e permanecer aqui, passeando pra lá e pra cá. Do azul ao abandono; do vermelho à revolta; do amarelo ao te amar e te querer de volta. (Sabemos, agora, que é ontem, que foi ontem, que já não existe, que não—não volta). O que volta é a revolta. Revolta que nunca foi embora e nunca irá. Ela não te abandona; ela te solta.

Eu sei que esse limiar é um mar; esse mar, que te engole, não é aquele que tu engoles quando tentas surfar. Aquele é salgado e gelado. Tem cheiro de casa, a força da tua mãe e a insistência do teu pai. Vai. E vem. Vai. E vem. Ai. E vem a saudade. E tem a Saudade. Vim pra te lembrar, lembra? Aproveita a saudade e a Saudade. Logo elas passam. Mas voltam. Sim, tu voltas e dá voltas, sem medo; te soltas.

Mas, agora, que é ontem, que foi ontem, que não existe, deixa eu te falar: vai passar. Mas vai voltar também. Ora mais forte, ora mais fraco. Hora mais forte, hora mais fraca. TIC. TAC. E baque.

Não vale a pena.

No tempo de descansar depois de tanto correr e se perder, só um suco de limão colhido do pé, na hora, no agora, que é, e foi ontem, que não existe mais, que o pai fazia, lembra? Ou aquele capilé geladíssimo que mãe preparava. Ah! Que sede que eu tava. Molhar a garganta seca com memórias desses tempos. Que as memórias parecem mais sonhos. Sonhos que viram memórias. Que viram histórias. Lembra?